BOSTON — Quando Zilda, seu irmão e os dois filhos dela chegaram aos Estados Unidos vindos do Brasil em 2021, eles tiveram que compartilhar tudo.
A família dividia um apartamento de três quartos em Brighton com outras cinco pessoas, algumas das quais dormiam na sala. Os nove sublocatários compartilhavam uma cozinha e um único banheiro. Dentro do único quarto do apartamento, Zilda e sua família dividiam uma cama de solteiro.
E todos na unidade compartilhavam o estresse de tentar evitar que a proprietária, alheia à situação, descobrisse que seu apartamento estava sendo sublocado.
O estresse tinha um bom motivo. O sobrinho da proprietária, que morava no andar de cima, acabou percebendo que muitas pessoas saíam do mesmo apartamento para trabalhar todos os dias e relatou a situação à sua tia. Todos os sublocatários foram obrigados a deixar o apartamento.
A região de Allston-Brighton, onde os aluguéis representam 90% das ofertas de moradia, há muito tempo é associada a unidades superlotadas e malconservadas. O bairro é conhecido por muitos moradores locais por abrigar grande parte da população estudantil da cidade, onde cinco ou seis estudantes podem morar no mesmo apartamento.
As autoridades municipais reprimiram a superlotação estudantil depois que uma estudante da Boston University que morava em um apartamento ilegal morreu em um incêndio em 2013, porque a unidade não tinha uma segunda saída, proibindo cinco ou mais pessoas não relacionadas de compartilhar um mesmo apartamento.
Mas mesmo que a cidade tenha tentado acabar com a superlotação entre os jovens inquilinos de Allston, a considerável população de imigrantes que chega do Brasil e da América Central tem vivido durante anos em condições similares de superlotação e risco, recebendo muito menos atenção. O problema agravou-se nos últimos anos, à medida que a instabilidade econômica decorrente da pandemia de Covid-19 canalizou um fluxo excessivo de imigrantes para um mercado imobiliário cada vez mais caro.
Com até 13 pessoas vivendo em um único apartamento, esses imigrantes moram em sublocações informais e contratos de aluguel às vezes rabiscados em um pedaço de papel. Como sublocatários, eles estão à mercê de um sublocador que pode impor-lhes limites extremos, restringindo sua liberdade de se movimentar pelo apartamento, usar os espaços comuns ou até mesmo ligar o aquecimento no inverno.
Nos últimos meses, o The Crimson conversou com dezenas de pessoas em Allston-Brighton e arredores sobre o problema da superlotação nessa região ocupada, por longa data, pela comunidade brasileira. O clero local, ativistas que lutam por direitos habitacionais e trabalhadores de organizações sem fins lucrativos contaram a história de um problema de décadas que se agravou desde a pandemia, à medida que a chegada de famílias aumentou e a crise habitacional da cidade atingiu novos patamares.
“Oitenta por cento, talvez mais, das ligações que recebemos de pessoas, toda a família mora em um quarto”, disse Heloisa M. Galvão, diretora executiva do Grupo Mulher Brasileira, uma organização sem fins lucrativos de Brighton. “Às vezes, até alugam a sala, um cantinho da cozinha.”
O Crimson entrevistou 10 pessoas, quase todas em português, que vivem ou viveram em apartamentos superlotados, algumas das quais só falaram com a condição de serem identificadas apenas pelo primeiro nome, temendo represálias dos proprietários. Os residentes descreveram condições físicas perigosas em unidades abarrotadas e disseram que partilhar um espaço tão pequeno com tantas outras pessoas tem impactos mentais enormes.
“A gente via até rato circulando à noite. Eu tinha medo do meu bebê nascer ali, morar ali”, Zilda disse. “A vida é difícil demais, porque ninguém gosta de morar dessa forma”.
“A gente se sente como um nada, um nada”, acrescentou ela.
Quando Geilson, um pintor brasileiro que pediu para ser identificado apenas pelo primeiro nome, chegou a Watertown – do outro lado do rio de Allston – em 2021, ele conseguiu um quarto de solteiro por US$ 1.200 por mês, muito menos do que teria pago em um apartamento completo em Boston.
Mas havia imposições.
Geilson foi proibido de usar quase todos os espaços fora do quarto. Ele tinha acesso à cozinha apenas uma vez por semana e tinha que manter uma geladeira separada em seu quarto com sua própria comida. Mesmo no rigoroso inverno da Nova Inglaterra, ele era proibido de ligar o aquecedor.
Para Geilson, como tantos outros brasileiros que chegam a Boston sem conexões ou recursos adequados, situações de vida tão restritivas e instáveis são frequentemente a única maneira de sobreviver.
Os aluguéis exorbitantes de Boston – combinados com dívidas que chegam a US$ 20 mil provenientes da viagem para os Estados Unidos –tornam impossível para muitos imigrantes brasileiros recém-chegados pagar por um apartamento inteiro. Mesmo que pudessem arcar com os custos, muitos residentes brasileiros não possuem os documentos necessários, como identificação ou comprovante de renda, exigidos para firmar um contrato formal de aluguel. O fato de muitos viverem nos EUA sem status regular de imigração acrescenta uma camada adicional de risco e complicações.
Assim, acabam alugando um quarto – ou parte de um quarto – muitas vezes de outro imigrante da mesma origem, por um preço barato e sem contrato. E eles se contentam.
A carta de sublocação de Geilson exigia “passar o inverno inteiro sem ligar o aquecedor”, disse Geilson em português. No final das contas, ele decidiu usar um aquecedor que lhe foi doado por um colega de trabalho que se compadeceu da sua situação - mas somente depois que o sublocador adormecia todas as noites.
“Eu só tinha acesso à cozinha uma vez por semana”, ele disse. “Eu tinha que cozinhar para a semana toda”. Além disso, não podia usar a sala de estar.
“Era difícil demais”.
A situação é ainda mais difícil para as crianças. Os pais entrevistados disseram que suas crianças tinham dificuldade em compreender as restrições associadas a um apartamento compartilhado e disseram se preocupar, reconhecendo que viver num ambiente confinado poderia prejudicar um período crítico do desenvolvimento infantil. Muitos pais disseram que as crianças podem desenvolver problemas comportamentais nessas condições.
“Eles ficam presos dentro de casa”, disse Mirliane Mendes, uma faxineira e babá que mora com dois filhos em Brighton. “Afeta a socialização com outras pessoas– não tem como”.
Muitos pais disseram que tentaram manter os filhos estritamente confinados ao quarto – tanto para evitar incomodar os outros inquilinos como para manter os filhos seguros.
Os pais ainda enfrentam um outro dilema persistente: o que fazer com as crianças enquanto trabalham. Eles precisam optar entre levar os filhos para o trabalho ou deixá-los numa casa com pessoas que mal conhecem, onde as crianças são, muitas vezes, supervisionadas por outras crianças apenas alguns anos mais velhas.
Viver em locais tão apertados com estranhos também coloca as crianças em alto risco de abuso sexual, disse Galvão.
Alessandra Fisher, Diretora de Serviços de Integração de Imigrantes e de Terceira Idade da Massachusetts Alliance of Portuguese Speakers (MAPS), escreveu numa declaração enviada por e-mail que “as crianças que crescem nestas condições ficam frequentemente traumatizadas”.
“Nossa equipe educa os clientes sobre os potenciais riscos de compartilhar apartamentos, mas, infelizmente, muitas vezes as famílias sentem que não têm outra opção”, acrescentou ela.
Zilda, que agora mora num apartamento de três quartos e trabalha como faxineira, disse que viver nessas condições com os filhos, de 15 e 17 anos, a deixou com um profundo sentimento de fracasso.
“O pior é você ver os seus filhos”, disse Zilda. “A gente quer dar o mínimo de conforto para os filhos. Um lugar bom para dormir, uma casa confortável para onde eles possam voltar”.
Para Mendes, morar em um apartamento superlotado foi uma experiência incrivelmente solitária.
“Você se sente abandonada dentro de um quarto”, disse ela. “Ninguém fala com ninguém.”
“Você não tem amigos”, acrescentou Mendes.
Por mais grave que possa ser o impacto mental e físico, as famílias de imigrantes em apartamentos superlotados também descreveram viver com medo de serem despejadas a qualquer momento.
Dado que a maior parte das sobrelotações acontecem informalmente e sem o conhecimento do proprietário – frequentemente em violação aos contratos de aluguel ou das leis locais – os atuais e antigos residentes descreveram terem que ser especialmente discretos sobre as suas condições de vida. Se o proprietário descobrir, o resultado pode ser o despejo.
Safi Chalfin-Smith, que trabalha com extensão à comunidade e Assistência Habitacional Emergencial para o Centro dos Trabalhadores Brasileiros, disse que a organização frequentemente encontra famílias sem-teto que foram forçadas a sair depois de serem descobertas morando com um parente ou amigo.
“Sublocar realmente coloca as pessoas em risco de despejo”, disse ela.
Quando Zilda foi despejada de seu apartamento superlotado em Brighton, ela entrou em pânico.
“Fiquei com medo porque éramos só eu e meus filhos. Como eu ia arrumar uma casa?”, disse Zilda. “Mas aí minha filha começou a trabalhar e me ajudou a alugar um apartamento de um quarto para nós.”
A sublocação ilícita também pode incentivar um perigoso silêncio de ambas as partes quando algo está errado dentro do apartamento – uma ocorrência comum, considerando que muitos apartamentos superlotados têm décadas e frequentemente apresentam percevejos, mofo, vazamentos ou serviços públicos com defeito.
O inquilino que subloca o seu apartamento pode decidir assumir a responsabilidade ou despesa de pequenos reparos no apartamento para evitar ligar para o proprietário e correr o risco que os subinquilinos sejam descobertos. Problemas mais graves, como infestações de pragas – que são mais difíceis de resolver sem a ajuda ou conhecimento do proprietário – podem simplesmente ficar sem solução.
Geilson, que agora subloca um quarto para uma família por US$ 1.200 por mês, disse que se esforça para manter o apartamento, repintando as paredes ou consertando problemas no banheiro.
“Você não compartilha nada disso como o dono para evitar de ele ficar indo lá”, disse Geilson. “Assim, não tem perguntas”.
Embora a superlotação tenha aumentado substancialmente nos últimos anos, a maioria das pessoas entrevistadas para este artigo salientou que este tem sido um problema na área há décadas.
“Isso é tão antigo quanto a imigração brasileira para Boston”, disse Carlos Siqueira, professor emérito da Universidade de Massachusetts Boston e coordenador do Projeto Transnacional Brasileiro do Instituto Gaston.
Os brasileiros começaram a chegar em Allston na década de 1980, quando a crise econômica do Brasil estimulou uma onda de imigração para a região costeira de Massachusetts. Essa região era um destino atraente para os recém-chegados, uma vez que já existiam aqui comunidades falantes de português.
Tal como hoje, as barreiras financeiras e institucionais associadas a aluguéis fizeram com que muitas pessoas que chegavam a Allston optassem pela sublocação enquanto não encontrassem maior estabilidade - embora a maioria naquela época fossem adultos solteiros e não famílias.
Roselia Sousa, uma faxineira que veio para Allston pela primeira vez em 1986, disse que dividia um apartamento com outras sete mulheres. Todas dormiam em colchões no chão.
“A gente morava num apartamento de um quarto e ninguém tinha cama”, disse ela.
A população brasileira em todo o leste de Massachusetts continuou a crescer, passando de apenas alguns milhares em 1980 para mais de 100.000 em 2017, de acordo com dados do U.S. Census Bureau. Esse número certamente omite inúmeros imigrantes que vivem no estado sem status legal de imigração.
A superlotação piorou à medida que o fluxo constante de recém-chegados coincidiu com a crescente escassez de moradias em Boston. Organizações sem fins lucrativos da região disseram que a situação só piorou após a pandemia: em 2021, o U.S. Customs and Border Protection, responsável por fazer a proteção de fronteiras dos EUA, registrou quase 20 vezes mais apreensões de brasileiros quando comparado há 2016.
À medida que os imigrantes brasileiros chegavam em número crescente a Massachusetts, muitos encontraram um local de desembarque em Allston-Brighton que, naquela época, já abrigava uma vibrante comunidade falante de português.
“É quase como uma moradia temporária até que encontrem outras formas de sobreviver em outros bairros”, disse Siqueira.
O bairro é acessível, podendo-se caminhar até a linha verde de metrô, a trens urbanos e muitos ônibus. A igreja católica local, Paróquia de Santo Antônio, oferece missas semanais em português. Várias organizações sem fins lucrativos atendem especificamente aos brasileiros, enquanto restaurantes, açougues e padarias brasileiras oferecem refeições tradicionais – preparadas com ingredientes importados diretamente do Brasil.
“Parece com [o lugar] de onde eles vêm”, disse Galvão, que lidera o Centro da Mulher Brasileira. “Temos uma expressão que diz: ‘Uma cidade com esquinas’, ou seja, você anda na rua e encontra as pessoas que conhece. Você encontra pessoas que conhece e para e conversa.”
“Allston-Brighton tem esse sentimento para nós”, diz ela.
Defensores que procuram melhorar as condições precárias de habitação de famílias que vivem em situação de superlotação dizem estar “entre a cruz e a espada”: pedir ajuda à cidade e disseminar o medo de despejo, ou não dizer nada e deixar as pessoas continuarem a viver em condições degradantes e perigosas.
Mesmo que o Departamento de Serviços de Inspeção de Boston (Boston’s Inspectional Services Department - ISD) – que enfatizou que nunca colocaria qualquer ocupante na rua – tome conhecimento da superlotação, os recursos habitacionais que dispõe para os residentes são extremamente escassos.
E embora o ISD possa impor violações do código sanitário estadual, que exige 150 pés (cerca de 45 metros) quadrados de espaço para o primeiro inquilino e mais 100 pés quadrados (30 metros aproximadamente) para cada inquilino adicional em unidades de aluguel, exigindo ao proprietário que compareça à Corte, essa ação pode fazer os inquilinos perderem sua única opção de habitação.
Galvão diz que muitos imigrantes não se manifestam por medo de retaliação por parte dos proprietários ou por receio de terem problemas com a cidade. Mas ela incentivou os residentes a contatarem o ISD, acrescentando que qualquer pessoa que pague aluguel num apartamento, formalmente ou não, tem “todos os direitos de um inquilino regular”.
“O principal problema que vejo é o medo”, disse ela. “Quando você está com medo, você não levanta a voz, não levanta a mão, não olha para frente – você tenta se tornar invisível.”
“Eles têm direito a um apartamento limpo, onde tudo funcione”, acrescentou Galvão. “Eles têm que ter um apartamento livre de percevejos, de baratas.”
Em uma entrevista, a Diretora Assistente de Inspeções de Moradias do ISD de Boston, Regina Hanson, disse que o departamento foi criado para atender inquilinos ameaçados por condições inseguras e não para ser ele- o departamento- uma ameaça em si. Ela disse que o departamento não despeja ocupantes, não pergunta sobre seu status imigratório e exige o consentimento do ocupante antes mesmo de entrar na residência.
“Quando entramos para fazer a fiscalização, estamos observando as violações do código sanitário estadual. Não estamos analisando o status de imigração das pessoas”, disse Hanson. “Os ocupantes são ocupantes.”
Ela acrescentou que o departamento conectaria qualquer ocupante despejado a serviços “abrangentes” dos departamentos de habitação e imigração da cidade.
Mas as principais formas da cidade oferecer assistência habitacional aos residentes – como sorteios de unidades a preços acessíveis, habitação pública ou tíquetes da Seção 8 – são acompanhadas, muitas vezes, por uma lista de espera de anos. O próprio ISD tem um número limitado de funcionários, o que dificulta a realização das inspeções obrigatórias de cada apartamento da cidade a cada cinco anos. Para começar, alguns proprietários nunca registram seus aluguéis na cidade, o que significa que nunca estarão sujeitos a uma inspeção regular.
Num comunicado, a Comissária do ISD, Tania del Rio, disse que o departamento inspecionou 25.000 apartamentos por ano e tem aumentado recentemente o número de inspecções proativas que realiza.
Embora Allston-Brighton registre uma concentração particularmente elevada de superlotação, esse é um problema que persiste em todas as áreas da cidade e em muitos grupos demográficos diferentes, incluindo imigrantes e estudantes irlandeses e chineses.
Zafiro Patiño, organizadora do grupo de justiça habitacional City Life/Vida Urbana, disse ter visto condições de superlotação em toda a cidade de Boston.
“Há colchões no chão, esqueça os quartos”, disse ela. “Você pensa: ‘Uau, isso está acontecendo? Isto é Boston?’”
—Cristiane Soares traduziu este artigo do inglês para o português.
—O redator da equipe Jack R. Trapanick pode ser contatado em jack.trapanick@thecrimson.com. Siga-o no X @jackrtrapanick.